Como, de fato, a arte se relaciona com a ironia? Em que pensamos quando nos referimos à noção de ironia nos dias de hoje? Ironia e arte são duas categorias que, nos últimos anos, aproximaram-se cada vez mais. Nem por isso podemos dizer que toda produção contemporânea é irônica ou, pelo menos, possui traços de ironia. Forma mutante e com características próprias, a ironia difere (sutilmente, em alguns casos, é verdade) de outras figuras de estilo, de retórica, de linguagem; em várias ocasiões não é percebida, permanecendo numa espécie de limbo entre o “dito” e o “não dito” e muitas vezes é confundida com o humor. A ironia se constituirá na intenção do interpretador assim como do seu produtor e atuará num contexto específico (político, social e, às vezes, até ambiental), numa relação entre o concebido e o percebido. Argumentamos que a ironia acontece como parte de um processo comunicativo; não é um instrumento retórico estático a ser utilizado, mas nasce nas relações entre significados, entre pessoas e emissões e, às vezes, entre intenções e interpretações. Divide-se, portanto, ininterreptamente – eis por que é uma multiplicidade. Especificando, é ironia justamente à medida que se atualiza, criando linhas de diferenciação que correspondem a seus diferentes dispositivos no campo da arte. Há apenas uma ironia, embora haja uma infinidade de fluxos que participam necessariamente desse mesmo pluralismo.
Porque a ironia é questão tanto de interpretação quanto de intenção, ela pode ser classificada como “questão de compreensão silenciosa”: é questão de cumplicidade ideológica, um acordo baseado numa compreensão partilhada sobre “como o mundo é”. A relação sujeito/objeto transforma-se em campos de força que desencadeiam processos singulares de individuação. O tornar-se irônico aqui é processo negociado entre duas entidades, no qual nos engajamos dotados de invenção que nos faz sentir e pensar de modo original e compartilhado.
O real valor da arte
Esta ponderação leva-nos a pensar sobre o real valor da arte. A teoria do valor de Duchamp explicita-se quando ele paga a seu dentista com o desenho de um cheque no valor de US$ 115, praticando uma espécie de escambo entre mercadoria e o instrumento de representação do valor, ambiguamente cheque e arte. Torna-se visível o que em geral deixamos de lado na relação mercadológica: espécies e diferença do trabalho. Duchamp propõe dúvidas. Qual é o estatuto disso: cheque ou obra de arte? O campo da economia infiltrando-se na arte, e vice-versa, encontra suas bifurcações em Andy Warhol (Two dollar bills, 1962), Cildo Meireles (Zero dólar, 1978-84 e Zero cruzeiro, 1974-78) e em Yves Klein (Zona de sensibilidade pictórica imaterial, 1962). Reintroduzir no domínio da arte o valor financeiro e prosaico do ouro em sua função simbólica, orientada não apenas para as coisas e para as trocas puramente materiais, tal como era o objetivo das suas transações artísticas.

Nesse sentido, Klein, mediante ritual próprio, venderá Zonas de sensibilidade pictórica imaterial a seus amigos, artistas e colecionadores, mas só aceitando moedas ou filetes de ouro como moeda de troca. O artista prometia restituir metade do valor da transação, por meio de várias ações, ao homem e à natureza, lançando-o assim no “ciclo místico e elementar da vida”, segundo suas palavras. Em 10 de fevereiro de 1962, teve lugar uma transferência de “sensibilidade pictórica”, organizada em Paris, entre os Blankfort, um casal de colecionadores americano, e Yves Klein. Ouro e um recibo trocaram de mãos entre o comprador e o artista. Klein lançou ao Rio Sena sete dos 14 lingotes de ouro que recebera. Enquanto isso, o Sr. Blankfort queimava o recibo da venda dessa transação, já que zonas de sensibilidade imaterial deveriam ser o nada, com exceção de uma qualidade espiritual; dessa forma, Klein insistia que tudo que restasse da transação fosse destruído [1]. A outra metade do “negócio” foi transformada em folhas de ouro com as quais realizou a sua série denominada Monogold ou “painéis dourados”. Sete compradores fecharam negócio com ele.
O texto que acompanha Árvore do dinheiro (1969), de Cildo Meireles, explica que a obra é formada por 100 notas de um cruzeiro, mas seu valor no mercado é 20 vezes maior: dois mil cruzeiros. Que tipo de operação econômica-artística é essa? “É acumulação, juros ou investimento?” [2] é a questão que Paulo Herkenhoff lança. O que ocorre é uma acumulação irônica e transparente do valor, apenas superficialmente aparentada com a questão proposta por Klein. Na acumulação de todos os seus materiais e no jogo (mercantil) em que está colocada, independente da sua vontade, Árvore do dinheiro declara a “defasagem entre valor de troca e valor de uso, ou entre valor real e simbólico” [3]. A origem dessa obra está numa observação irônica sobre o sistema e o mercado:
Era muito raro, mas quando tinha a ocasião de contemplar um montinho de dinheiro, era como se o trabalho se formasse na sua frente e fosse embora, porque você tinha que almoçar, e, portanto a escultura ia embora[4].
Discurso irônico que também é usado quando o artista comenta a proposta de compra da Árvore do dinheiro:
Há uns cinco anos, um banqueiro apareceu com uma proposta de comprar a obra. Significava o máximo do fetiche para mim. Eu nem dei valor de compra. Se eu fizesse, seria tão alto, que ele ficaria espantado com essa merda chamada dinheiro, porque o dinheiro fede mesmo, não é? [5].
Economia e arte imbricam-se na linguagem. O campo da economia encontra seu par na linguagem e na escritura: a oposição entre significante e significado não é outra coisa senão “cisão” entre valor de uso e valor de troca. Valor, circulação, câmbio, meio circulante são operações econômicas envolvidas agora nesta produção “explosiva”.
Em Ouro e paus (1982-95), o valor não está no que poderemos encontrar ao abrir as caixas. São conteúdos de nada, que Cildo Meireles nos apresenta. Como aponta Paulo Venancio Filho, “o valor está no exterior, o próprio caixote é o valor. No elemento desprezível, o prego, encontramos o ouro” [6]. Física, economia e política não têm hierarquia no trabalho de Meireles; todas agem numa sintonia contraditória, como se isso fosse possível [7]. Relações duvidosas entre massa, peso, volume e cheiro são postas diante de nossos olhos, mãos, narizes e ouvidos. Não tanto uma situação lúdica entre a ciência e a arte, mas uma alegoria de nossas fragilidades, do meio em que vivemos, da sociedade que construímos. Cildo Meireles propõe uma espécie de desobediência civil, porém mais do que isso, um alargamento de nossos sentidos e uma tomada de posição frente ao mundo. A economia é a esfera da produção em massa, do poder, da circulação de valores, de um mundo em constante movimento que não pode parar em momento algum, senão corremos o risco de falhar. Mas a “falha” pode estar presente nesse mesmo movimento ininterrupto. São microdesordens numa estrutura planejada para não assumir riscos, para não ter erros. Assim como em Inserções em circuitos ideológicos: projeto coca-cola (1970); Fio (1990-95) utiliza como método a investigação a fim de descobrir uma falha no sistema e aproveitá-la para espalhar a contra-informação.
Na montanha de feno cercado de Fio (1990-95), Cildo Meireles questiona: “O que você procura?”. Uma agulha no palheiro? Se isto for, aventure-se a procurar nos 48 fardos de feno, amarrados por 100 metros de fio de ouro. Talvez essa busca valha mais a pena se dissermos que essa (única) agulha é de ouro 18 quilates. A ironia manifesta-se nessa discrepância entre valor de uso e valor de troca, entre o trabalho e o trabalho de arte; no final das contas, entre ganância e profunda desilusão existencialista. Como achar essa agulha, a não ser no título do trabalho? Porém, o fio existe, está camuflado pelo feno; e o fio sendo visível, a agulha poderá ser também. Teoricamente, se chegaria à pseudo-oculta agulha. A questão do valor de uso e valor de troca encontra sua prova no real, na confluência entre uma atitude prática, econômica e irônica do artista, como podemos observar nessa história que ele relata:
Quando exibi Fio e Ouro e paus, numa galeria do Rio de Janeiro, o marchand queria contratar uma transportadora especializada, com escolta e segurança armada. Eu propus a um serviço de kombi o seguinte: ‘Existem uns caixotes para levar numa galeria. Você topa levá-los?’. O dono da kombi aceitou e levou toda a série de Ouro e paus por um preço infinitamente menor do que cobraria uma transportadora especializada. Para ele, eram apenas tábuas e nada mais. O marchand adorou a economia. [8]
O artista ocupa-se sobre a discussão do espaço da vida humana, concomitantemente amplo e vago. Contradizendo os minimalistas, a visibilidade, em Meireles, escancara: “O que se vê é o que não se vê. Desconfie de mim!”. Uma montanha de feno não é só uma montanha de feno. Tem algo escondido, tem algo por trás disso. Meireles oferece um sistema aglutinador de experiências, que articula desde gestos insignificantes até grandes estruturas macro-econômicas. Como afirma Paulo Venancio,
[as obras de Cildo Meireles] procuram menos a superfície do que as forças, relações, tensões que estão por trás da superfície. Por isso encontramos nesses trabalhos uma situação limite: entre a visão e a matéria [9].
São estratégias de linguagem, embates contra o sistema, uma espécie de política ou agir social (que já encontrava sua incipiente presença no neoconcretismo); em suma, pequenas apropriações que tendem a minar ou revelar estruturas que nos mantém presos, cegos, a uma superestrutura política e mesquinha. Deve-se acrescentar a isso a presença do diferencial Duchamp. Percebemos nas inconstantes intervenções do readymade, um agir que não termina na obra, mas continua na sua inserção, em seu pathos crítico. Meireles queria dissociar-se do provérbio [de uma agulha no palheiro]; estava direcionando sua proposta para a cor. O artista preocupa-se essencialmente com esse elemento, e na tentativa de esconder algo, acaba por ressaltar a matéria e a forma do objeto:
Ouro e paus, desse ponto de vista, é basicamente uma ilustração desse provérbio, tentando trabalhar essas duas vertentes: a coisa da forma e a coisa traumática, essa espécie de monocromo [10].
Camuflagem e ironia
A questão do valor de troca e do valor de uso é uma questão que permeia toda a trajetória de Meireles, com uma demarcação bem definida em Inserções em circuitos ideológicos: projeto coca-cola (1970), porém nessa série, o artista tem como suporte uma mercadoria comum, barata, que está “à mão” de qualquer camada social, que pode ser comprada facilmente e ao mesmo tempo é um objeto de desejo (alcançável economicamente) por uma grande parcela da sociedade; já em Fio e Ouro e paus, a discussão sobre o valor de uso e troca e a camuflagem do objeto de arte por essa tomada de posição irônica e política (não necessariamente nessa ordem) permanece, porém, alcança uma nova instância: a entrada do ouro como matéria de constituição das obras. Mas, dessa vez, a “matéria-prima”, também é algo desejável (com uma amplitude – compreensível – bem maior do que a garrafa de coca-cola), porém muito mais difícil de ser alcançado. Contudo, a discussão sobre o valor simbólico e real do objeto atravessa o questionamento sobre qual é o lugar do objeto de arte e lança uma nova questão: qual é o campo dos materiais de arte? Quando esse acento da camuflagem é ressaltado, o artista está se dirigindo objetivamente à questão da aparência, pois a camuflagem é alguma coisa que aparenta uma ausência. Entretanto, em Inserções em circuitos ideológicos (1970) as suas premissas são a existência de determinados mecanismos de circulação na sociedade e a veiculação da ideologia do produtor por meio deles. Essas práticas trazem implícita a noção de meio circulante, como é o caso do papel-moeda e das embalagens de retorno.

Seria ingênuo acreditar que se possa falar a respeito de arte hoje sem pressupor a existência de um “campo social autônomo” amparado pelo circuito de arte. De fato, falar em obras, artistas e público enquanto entidades é já estabelecer uma estrutura funcional no centro de um sistema francamente singularizado. Mas, se, de um lado, o circuito de arte assegura a permanência do sistema simbólico e permite ao artista profissionalizar-se, propiciando as condições de produção, circulação e difusão de sua obra, de outro, esse mesmo campo reduz esse sistema a seus interesses imediatos.
Embora um vasto número de objetos integre o circuito de arte; esse, ao se manifestar pelas decisões individuais de seus agentes, atua como receptor coletivo e os seleciona segundo suas expectativas em relação à arte [11].
E por que não usar as próprias regras do sistema para causar um curto-circuito nessa estrutura? Em Inserções em circuitos ideológicos: projeto coca-cola [12], Meireles tirou temporariamente de circulação garrafas de coca-cola e com a ajuda do artista visual Dionísio del Santo [13], que dominava técnicas de serigrafia, imprimiu decalques sobre as garrafas, impressos com tinta branca vitrificada (“que era o mesmo procedimento da fábrica: você levava ao forno, derretia e aquela tinta se entranhava no vidro” [14]), onde se lia, além do título do projeto, propostas, tais como: “Gravar nas garrafas, opiniões críticas e devolvê-las à circulação”, a expressão “Yankees, go home”, o nome de desaparecidos políticos ou pessoas postas “fora de circulação” ou ainda o método para a criação das inserções propriamente ditas, desde a fabricação do decalque até a sua colagem, para que qualquer um pudesse produzir as suas opiniões críticas. Embaixo viam-se as iniciais C e M, e a data. Ao final desse processo, as garrafas eram repostas em circulação.
Quando a garrafa está vazia não se percebe o texto, que só aparece contra o fundo escuro da bebida. Inserções visavam atingir um número indefinido de pessoas, um público no sentido mais amplo do termo, e não limitar ou substituir essa noção pela de consumidor, que é ligada ao poder aquisitivo. Elas só teriam sentido enquanto fossem praticadas por outras pessoas, numa possibilidade real de transgressão. São táticas (irônicas) desviantes, produtoras de movimentos, em deslocamento constante, evitam posições fixas e o isolamento de outras atividades e conhecimentos. Inserções são processos, e não fins, formas de pensar, agir e refletir [15]. Nessa proposta, não há um público stricto sensu (no sentido de uma observação, de uma passividade frente à grande e genial obra de arte) ou testemunhas oculares, mas agentes. Agentes envolvidos numa situação dinâmica que investe sobre o mundo, aí inscrevendo possibilidades de crítica, subjetividade e questionamentos.
Brechas…
Dessa forma, esses readymades permaneceram em seu circuito físico social em vez de serem levados para o da “arte”. Meireles subverte a ação lógica se apropriando do próprio mecanismo industrial: “Inserções em circuitos ideológicos não é o objeto industrial posto no lugar da arte, mas o objeto de arte atuando como objeto industrial” [16]. A sua eficácia não se funde na quantidade de ocorrências, mas no seu enunciado e na experiência de tornar-se factível, o que realmente aconteceu. O artista volta suas ações para a fabricação do capital. Em Zero cruzeiro (1974-78), a idéia inicial era a sua circulação, e em 1978, Meireles decide vender essas notas através dos camelôs. No centro do Rio de Janeiro, o artista trava contato com esses comerciantes ambulantes e chega ao seu gerente-geral, de codinome Oxossi. Ao mostrar o “produto” a Oxossi, este se interessou, mas disse: “Olha, primeiro, temos que fazer um teste”. O teste deu certo e cerca de cinqüenta notas foram vendidas ao grande público. Com a venda rápida, Oxossi se entusiasma com a idéia e chama Cildo Meireles para conversar: “Isto me interessa. Como é que a gente pode fazer?”. O artista responde: “Eu não tenho a menor idéia. É esta arquitetura que estou procurando. Saber como é que a gente pode fazer este negócio”. Oxossi oferece a seguinte proposta ao artista: fabricar 1.500.000 destas notas, por meio de serigrafia, e vendê-las através do comércio ambulante. Ele também pede que Meireles retorne no dia seguinte para eles fechem o pacto. Segundo o acordo pré-estabelecido, o artista entregaria algumas notas e os ambulantes pagariam pelo produto e por sua impressão; Oxossi ficaria responsável pela industrialização e mercantilização das notas. Cildo Meireles aprova a idéia, mas quer se precaver e busca um abrigo jurídico com Luiz Buarque de Hollanda. Um dia depois, Meireles procura o “gerente” dos camelôs para fechar o acordo, porém a resposta de Oxossi, é sintética: “Sinto muito, o produto vende, mas não poderá ser comercializado”. O artista, surpreso, responde: “Mas como assim?”. E Oxossi conclui: “Desculpe-me, mas não vai dar para seguir adiante, porque a maneira eficaz de anunciar este produto entre o público seria: ‘Veja a que ponto chegou o nosso dinheiro’. E isto pode nos dar problemas” [17], reproduz ironicamente o artista, a fala do “gerente”. Segundo Meireles, “[a resposta e a ação de Oxossi significava] exatamente a questão da inflação no Brasil, como a moeda estava sendo desvalorizada, e eu queria fugir disso. O discurso era discutir, sobretudo, a expressão: ‘Isto não vale nada’” [18]. Chegou ao fim, aqui, a possibilidade de circulação das cédulas. O artista ficou preocupado em ser trapaceado pelos ambulantes, já que estes tinham em mãos o “produto” e poderiam fabricar rapidamente uma grande série dessas notas. Mas tal fato não aconteceu.
Cildo Meireles não está interessado no readymade como um estilo de arte, mas em termos da circulação de um objeto manufaturado. Garrafas de coca-cola e cédulas de dinheiro com mensagens impressas não são, efetivamente, os trabalhos de Meireles discutidos aqui, mas apenas “os rastros de inserções silenciosas que promoveu (direta ou indiretamente) em sistemas mercantis e institucionais” [19]. Como afirma o artista:
O Projeto coca-cola era uma metáfora do Projeto cédula. Este tem um teor de eficácia, porque teoricamente você vive sem coca-cola, mas não sem dinheiro. As razões para a criação deste trabalho residem exatamente nas contradições de um sistema, que é o sistema vigente até hoje. Este sistema se preparou para enfrentar os grandes inimigos. Na verdade, os grandes adversários deste tipo de mentalidade, que é expansionista, é o próprio capitalismo industrial. A sua fragilidade repousa exatamente na minimalidade de um perigo potencial [20].
Apesar da origem de Zero cruzeiro ser em 1974, ano em que a coca-cola já não era mais inserida no circuito, entramos no terreno da ficção, acrescentamos o fluxo irônico e perguntamos a Cildo Meireles: E se alguém comprasse a coca-cola, de inserções em circuitos ideológicos, com uma nota de zero cruzeiro?
Literalmente fecharia-se o circuito. O vendedor falaria: “Pô, você está me dando uma nota escrita!”, e o cliente responderia: “Mas você também está me dando uma garrafa escrita!”. São duas formas de relação que acabam criando um atrito. [21]
Estes trabalhos seriam o avesso da operação por meio do qual Duchamp criara o readymade quase seis décadas antes:
Em vez de subtrair um objeto do campo mercantil e colocá-lo no campo consagrado da arte, Cildo Meireles propunha a inserção de informações ruidosas no campo homogêneo em que as mercadorias circulam e se trocam.[22]
O readymade consiste em tomar um produto industrial e torná-lo incomum pela via da subjetividade. Notamos que a idéia por trás das Inserções era o oposto: começar a partir de uma pequena coisa individual e atingir uma escala maior por meio de bifurcações e ramificações. É o caminho oposto ao do readymade. Meireles questionava, ademais, a noção de autoria do próprio trabalho, posto que estimulava outros a fazer tais inserções em seu lugar mediante as instruções de procedimento que fornecia. Cada inserção exigia tática e ação política específicas: o trabalho é uma operação e não os objetos. Porém, Meireles opera num sistema que teoricamente é perfeito em sua formatação estrutural, mas que permite brechas. O artista trabalha exatamente com estes espaços, se apropria da própria dinâmica que o sistema age: “Coisas, cada vez maiores, se apoiando em coisas cada vez menores” [23].
Das invenções monetárias para a utopia imobiliária, ainda no circuito irônico das invenções artísticas. Cildo Meireles, em entrevista ao autor, apresenta o seu projeto não realizado, de 1969, para a série Arte física: a idéia do artista seria colocar à venda um terreno (real) numa galeria de arte. A única peça à venda durante a exposição seria esse terreno; o anúncio seria a obra. Segundo Meireles, “durante um mês você venderia aquele terreno. E se fosse vendido, a galeria ficaria com 33%. A pessoa interessada compraria um terreno, só que ele teria sido comprado numa galeria. É deslocar o mercado imobiliário para dentro da galeria” [24].
[1] GOLDBERG, RoseLee. Performance art: from futurism to the present. 3 ed. Londres: Thames & Hudson, 2001, p. 147 (tradução do autor).
[2] HERKENHOFF, Paulo. Um gueto labiríntico: a obra de Cildo Meireles. In: HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo; CAMERON, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 47.
[3] MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p. 28.
[4] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
[5] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 18 de junho de 2007.
[6] VENANCIO FILHO, Paulo. Física, economia e política. In: MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles: ouro e paus. Rio de Janeiro: Joel Edelstein Arte Contemporânea, 1995, s/p (catálogo de exposição).
[7] Meireles também trabalharia com o ouro solidificado em outro material com a obra Paulista/97, em que 19 pedras são “perfuradas” por parafusos de ouro.
[8] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
[9] VENANCIO FILHO, Paulo. Situações limite. In: FERREIRA, Glória (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006, p. 300-301.
[10] Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
[11] VINHOSA, Luciano. Da prática da arte à prática do artista contemporâneo. In: GERALDO, Sheila Cabo (org.). Concinnitas: arte, cultura e pensamento. vol.1. n.8. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Arte, Instituto de Artes, UERJ, 2005, p. 148.
[12] O Projeto coca-cola consistia na impressão, em vasilhames vazios do refrigerante (nessa época feitos de vidro e retornáveis ao fabricante para reaproveitamento), de mensagens contrárias ao efeito “anestesiante” daquela (e de qualquer outra) mercadoria, assim como ao sistema repressor, e em sua devolução, em seguida, à circulação mercantil. Algumas inserções do Projeto Coca-Cola foram, efetivamente, trocadas em bares e restaurantes por garrafas do refrigerante, em 1970.
[13] Dionísio del Santo também fez a tela para a serigrafia das Inserções em circuitos ideológicos: projeto cédula (1970). Cf. MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
[14] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
[15] Cildo Meireles nunca vendeu nenhuma garrafa de Coca-Cola das Inserções em circuitos ideológicos, apesar do grande interesse do mercado em adquiri-las. Como disserta o artista, “esse trabalho [Projeto Coca-Cola], eu nunca vendi. Mesmo que quisesse vender, eu não poderia. Ele não é para vender, é para ser usado. Ele só existe enquanto alguém estiver fazendo a operação”. Cf. MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 18 de junho de 2007.
[16] MEIRELES, Cildo. Information. In: HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo; CAMERON, Dan. Cildo Meireles, op. cit, p. 108-09.
[17] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 03 de abril de 2006.
[18] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 18 de junho de 2007.
[19] DOS ANJOS, Moacir. Do caráter mercantil, monetário e, ainda assim, autônomo do objeto de arte. In: FERREIRA, Glória; FILHO, Paulo Venancio (ed.). Arte e Ensaios. n.6. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, 1999, p. 75.
[20] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 03 de abril de 2006.
[21] Idem, ibidem.
[22] DOS ANJOS, Moacir, op. cit., p. 74.
[23] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 03 de abril de 2006.
[24] MEIRELES, Cildo. Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro. Em: 11 de maio de 2007.
