A conclusão a seguir é do critico de arte Frederico Morais, ela nos guia, e foi publicada no Jornal “O Globo” em 17/10/1983, na coluna de artes plásticas. Ele escreveu que na obra Obscura luz, de Cildo Meireles, “o que vemos não é a luz, mas a sombra — sua negatividade”. Obscura luz (1982) é um trabalho relativamente simples, pois trata-se de um caixa branca montada na esquina de uma parede, criando duas laterais de comprimento diferentes. Sobre uma dessas laterais, o artista projetou a sombra de uma lâmpada. É o que se vê.
É o que se vê?
Jacques Lacan disse em 1964 que aquilo que eu vejo não é jamais o que quero ver. Neste mesmo ano, ele nos comunica uma espécie de função do artista no campo do olhar, dizendo que o artista mostra aquilo que sem ele não seria possível ver. O que estaria disponível ao olhar, afinal? E o que seria isso que o artista é capaz, por sua proeza, expertise ou sina, nos mostrar? A resposta parece estar próxima ao que Lacan chamou de real. O real, que não é o equivalente à realidade, e tem por alcunha a própria ideia do impossível. O real desafia a realidade, incessante e indomável. O real da psicanálise é o que não fixa, não se escreve, não faz imagem. Nas palavras de Lacan: “o real é aquilo que não cessa de não se escrever”.

Então diríamos que o que vemos deixa sempre um pedaço de fora, um pedaço de real. Não vemos tudo, somente pedaços. Não vemos nada de frente, somente de viés. E o trabalho do artista, ao menos no campo escópico, seria nos lembrar de que existe um pedaço que ficou de fora, um além do que vemos. Esse pedaço pequeno, mas de forte presença, é o que Lacan chamou de “objeto a“. Esse pequeno objeto é causa do desejo e a angústia, como aviso de sua presença, compõem juntos os avessos da mesma moeda. Trata-se de um objeto perdido, um pedaço, um resto que existe para agitar o sujeito.
Realidade como caleidoscópio em montagem
A presença — em ausência — deste objeto é o que permite a reconfiguração da realidade. A realidade é estável, mas pode balançar. O artista a faz balançar (a loucura também); e, quando balança, “outra cena” aparece. Este enredo sobre o objeto e a possiblidade de uma “outra cena” (a expressão de Sigmund Freud, em 1900) parece abrir diálogo com a leitura de Frederico Morais sobre Obscura luz, quando este diz que “há uma realidade que não se deixa mostrar, nem consegue se esconder”. O que vemos neste trabalho? O que ele não mostra, insinua e, desse modo, nos agita?
Se existe um pedaço de fora é porque as coisas não são tão estáveis e funcionam tão bem assim como imaginamos. O que vemos, isso que chamamos por realidade, não passa de uma invenção, um mosaico montado com o que Lacan chamou de “peças escolhidas”. Nesta escolha forçada, marcada pelo desejo, algo resta de fora. Foi exatamente essa montagem que Freud chamou por fantasia e que dá nome a uma experiência de realidade possível.

Se tomarmos a fantasia como uma imagem, um quadro, uma cena, poderíamos dizer que algo ali estaria indicado, mesmo sem aparecer. Aqui, a célebre referência (trabalhada por Lacan e Foucault) é a pintura As meninas (1656), de Diego Velásquez, na qual um quadro aparece dentro do quadro, como o sonho dentro do sonho em Freud. Naquela pintura, o cavalete do artista esconde o real da cena, mas indica pela estrutura do avesso, que há qualquer coisa fora da ordem na cena do mundo.
Em seu seminário sobre A angústia (início da década de 1960), Lacan diz que Freud apresentou o inconsciente como um lugar que ele denominou eine anderer Schauplatz (“uma outra cena”). Há uma nota de tradução sobre a palavra francesa scène, usada por Lacan neste seminário. A nota informa que o termo indica uma dimensão espacial, além da marcação temporal – divisão do ato teatral ou cinematográfico e seu desenrolar, por exemplo. Nesse sentido, trata-se do palco e, até, o próprio teatro, cabendo a Lacan jogar com essas nuances de significação.
Lacan diz que é no palco, portanto na cena enquanto palco, que montamos o mundo, no sentido de que “as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis do significante”. Anos antes, no seminário sobre A ética da psicanálise (entre 1959 e 1960), Lacan se ocupou em nos comunicar que, dentre as ofertas da dita realidade, existe uma escolha. Essa escolha indicaria uma subjetivação em relação à experiência de mundo. O que poderia ser compreendido no sentido de que essas ‘coisas’ não se apresentam sem estarem marcadas pelo que o sujeito teria de mais singular. Nas palavras de Lacan, tratam-se de “peças escolhidas da realidade” e, uma vez escolhidas, não podem mais serem tomadas como “homogêneas às do mundo”. Essas coisas em cena ou “peças escolhidas”, montam a cena no palco, o que leva Lacan a dizer que “o palco é a dimensão da história e que a história tem sempre um caráter de encenação”.
‘Negatividade’
Voltamos com a frase de Frederico Morais sobre a obra Obscura luz, de Cildo Meireles: “o que vemos não é a luz, mas a sombra — sua negatividade”. Para além da indicação de que há uma relação de complementariedade entre luz e sombra, diremos que a “negatividade” que Morais testemunha, através da obra de Cildo, se parece em muito com aquilo que Freud recolheu em seu consultório. A psicanálise se montou a partir de fenômenos negativos de linguagem, desde os sonhos como imagens que desafiam a realidade, passando por toda “psicopatologia da vida cotidiana” e seus lapsos, atos falhos, palavras trocadas, esquecidas, inventadas e ditas na negativa: “sonhei com uma mulher e não era a minha mãe”. O “não”, a Verneinung freudiana que desafia e desafina o sujeito em seus enunciados. Segundo Morais, faz parte da construção da obra de Cildo essa dimensão sutil de renovar, desviar o sentido: tudo tem um duplo e obscuro sentido, “impondo uma nova leitura da realidade”.
descartável/perecível – impotência/impossível
Talvez tudo no universo seja perecível. Talvez o universo seja perecível. Talvez tudo seja durações. E, Deus, apenas a mais longa delas. Não sei. O que sei é que o perecível difere muito do descartável. O perecível é uma condição metafísica superável pela aceitação da hipótese de que o universo é finito. Já a descartabilidade é uma prática econômico-consumista fundada na ilusão da infinitude.
Acho que essa é, sim, uma questão que merece a reflexão de todo artista, porque ela incide sobre a natureza, o espírito e a aparência do seu produto.
Perecibilidade é sabermos que vamos morrer. Descartabilidade é suicidarmo-nos por causa disto.
Not to be or not to be, eis a questão.
Cildo Meireles, sobre o trabalho Obscura luz (1982).
Jacques-Alain Miller escreveu que duas vias impedem o acesso ao inconsciente freudiano. A primeira é a ignorância do não querer saber, não querer olhar; a segunda é o poder: “a paixão pela potência oblitera o que o ato falho revela (que há furo no saber)”. O psicanalista italiano Alfredo Zenoni diz que uma “vitória” de análise seria fazer uma passagem da impotência ao impossível – que respeita e considera algo do real. Este parece igualmente um dos compromissos do artista.
