Além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua em estado gasoso?!
João Guimarães Rosa[1]
Em outubro de 1983, Cildo Meireles inaugurava a exposição Obscura luz. Primeiramente na Galeria Saramenha, no Rio de Janeiro, onde permaneceu em cartaz do dia 3 ao 17, e em seguida na galeria Luisa Strina, em São Paulo, do dia 11 ao 31, contando com outros exemplares dos mesmos trabalhos. São eles: o objeto que dá título à exposição, Obscura luz (1982); dois trabalhos da série Objetos semânticos, que são Porta-bandeira (1981) e Percevejo/cerveja/serpente (1980); e três trabalhos intitulados Parla (1982), Inmensa (1981) e Desaparecimentos (1982).

Além dos objetos, o artista apresentou três performances inéditas, realizadas por atores nas duas aberturas: Aladim, Malabarista e Trabalho zero (também conhecido como Estivador). Aladim, sentado de pernas cruzadas, atritava dois pedaços de madeira para tentar produzir fogo. O Estivador sustentava nas costas, imóvel, um saco pesado. O Malabarista movimentava bolas no ar. As ações funcionavam naquela exposição como uma espécie de linha-de-passe, fazendo os significados dos trabalhos circularem, segundo o texto de apresentação do poeta João Moura Jr., presente no catálogo da mostra. O crítico Frederico Morais, concordando com o poeta, reforça em um texto para o Jornal O Globo[2] que as três performances são como legendas para os trabalhos. Mais do que isso, são também, para Morais, responsáveis por explicitar a dimensão política da exposição e sua contextualização na realidade brasileira, uma vez que, nos trabalhos expostos, a dimensão poética aparentemente sobressai sobre a política. Tão poéticos quanto políticos sempre foram os trabalhos de Cildo, como Tiradentes – Totem-monumento ao preso político (1971), Zero Cruzeiro (1974-78) ou Fiat Lux – Sermão da montanha (1979). Mas se esses exemplos da década de 1970 fornecem imagens que imediatamente violentam, profanam ou afrontam, bem como títulos que denunciam sua intencionalidade política, os trabalhos apresentados em Obscura luz apostam na sutileza da linguagem visual e verbal.
Como em seus trabalhos das décadas de 1960 e 1970, Cildo segue se apropriando de objetos e imagens que são banais, familiares. Paradoxos e ironias, sempre presentes em seus trabalhos, possuem presença constante em Obscura luz. O que pode ser sentido como uma dobra em seu trabalho, consolidada pela exposição, é o modo de lidar com a linguagem e a materialidade a partir da experiência dos Objetos semânticos. Veremos a seguir como isso opera em cada trabalho da exposição.
Percevejo/cerveja/serpente e Porta-bandeira são os dois únicos trabalhos da exposição que de fato pertencem aos Objetos semânticos. Essa série de Cildo, também composta por outros objetos não presentes na exposição, como Dados (1970) e Resposta (1974), consiste em trabalhos que são atrelados à palavra, sendo imprescindível a articulação com seus respectivos títulos para a fruição. Percevejo/cerveja/serpente é composto por três ripas de madeira de baixo valor, que possuem, cada uma, em sua extremidade, um pequeno objeto de ouro com formatos diferentes. Uma minúscula tachinha identifica a ripa “percevejo”, uma argola de abrir latas caracteriza “cerveja” e dois dentes de cobra nos sugerem “serpente”. O título do trabalho, e em especial sua sonoridade, remete aos verbos perceber, ver e ser e às conjugações vejo, na primeira pessoa do singular, e veja, no imperativo. O que se percebe, o que se vê e o que de fato é são questões provocadas não apenas por esse trabalho, no qual há um jogo de valores e hierarquias em sua materialidade, como também em todos os outros de Obscura luz. São três perguntas que norteiam a exposição.

Já Porta-bandeira consiste em um mastro, oco em seu interior, com dois pequenos orifícios por onde é possível observar as pontas de um tecido que lhe escapam, uma suposta bandeira que nele é armazenada – é o que concluímos ao ler o título do trabalho. Porta-bandeira, nome que de imediato evoca a imagem de um sujeito que cumpre uma função comum em cerimônias militares ou no carnaval – tornar visível e ativar uma bandeira – aqui designa um objeto inerte que faz o oposto – torna invisível, esconde.
Os dois Objetos semânticos são “legendados” pelo Malabarista. A circularidade no jogo entre as palavras, seus significados e os objetos é traduzida no gesto do ator.
Se na série Objetos semânticos a articulação entre o trabalho e o título é imprescindível, isso não quer dizer que nos outros trabalhos, mesmo não havendo a mesma necessidade, essa interlocução não seja desejada. Tomemos como exemplo Parla: trata-se de um bloco de granito, posto sobre uma cadeira de madeira e couro, aludindo à imagem de uma pessoa sentada, diante de três blocos mais baixos feitos com o mesmo material, com formato similar a um pequeno banco, porém vazio. O formato rígido e rigorosamente geométrico do granito pode parecer dialogar com as esculturas minimalistas da década de 1960, mas a célebre frase de Frank Stella, “O que se você vê é o que você vê”, é o que há de mais oposto aos trabalhos de Cildo Meireles, que, sobretudo na mostra Obscura luz, nos fazem desconfiar daquilo que vemos. Com Parla, o artista produz um curto-circuito na história da arte. O título rememora a frase supostamente dita por Michelângelo (segundo a narrativa de Giorgio Vasari[3]) ao finalizar sua escultura de Moisés, clamando que a obra, tão aparentemente viva, falasse. Mas a imagem que vemos em Parla é de total imobilidade, frustrando qualquer expectativa de vivacidade, e de mudez, contradizendo o próprio título. Ainda buscando referenciais na história da arte, podemos nos deparar com O pensador de Auguste Rodin, outra obra prima da escultura, representativa de um período em que a noção de arte se remodelava adquirindo sentidos radicalmente diferentes daqueles da era de Michelângelo – lembremos ainda que Rodin é considerado pela crítica Rosalind Krauss o primeiro artista a desconstruir a lógica clássica da escultura europeia.[4] Evocando a imagem d’O pensador em seu estado de reflexão, reconfigurado nos mudos blocos de granito, somos provocados a esperar da obra não a fala, mas a escuta. Somos nós quem construímos seus sentidos por meio do discurso. O imperativo parla, ou fala, é direcionado ao espectador – tal como o “veja” de Percevejo/cerveja/serpente.

Inmensa (do latim in mensa, em português na/sobre a mesa) é um trabalho montado de maneira modular, onde mesas e cadeiras de madeira pequenas sustentam outras, que são progressivamente maiores e mais pesadas. A composição forma uma estrutura arquitetônica onde noções de equilíbrio e hierarquia são questionadas, uma vez que a base da construção é menor e mais frágil. Os objetos pequenos e supostamente fracos sustentando os de maior peso e medida refletem dinâmicas existentes nas relações sociais e de poder.
Parla e Inmensa dialogam com a performance Trabalho zero. Se para física o trabalho é calculado a partir da força e do deslocamento, se não há deslocamento não há trabalho. O estivador, segurando um pesado saco de grande peso sem, no entanto, se deslocar, não estaria realizando um trabalho, de acordo com a física. Sua imobilidade evoca Parla enquanto seu esforço para sustentar o peso evoca Inmensa.
O trabalho-título da exposição também carrega um paradoxo. Como poderia a luz ser obscura? Na superfície de uma caixa branca instalada na parede vemos a imagem de uma lâmpada formada pela sua própria sombra – composta, portanto, pela condição negativa da luz, sua ausência. Não vemos a lâmpada, cuja presença no interior da caixa é apenas sugerida pela sua sombra, assim como não é visível para o espectador a origem do feixe de luz que ilumina a caixa e projeta a sombra da lâmpada. O objeto funciona como uma lanterna mágica, dispositivo antecessor do cinema e dos modernos aparelhos de projeção de imagem, inventado ainda no século XVII, que era capaz de projetar imagens pintadas sobre um suporte de vidro com a utilização de uma fonte luminosa. Como em Parla, o imediatismo da visão e das palavras é colocado em xeque e o observador é levado a um complexo exercício imaginativo. Sentidos duplos e obscuros são provocados nesse jogo de mostrar-esconder, visível-invisível, presença-ausência. Cildo nos faz desconfiar de uma das mais clássicas oposições, luz versus escuridão, bem como da positividade atribuída ao primeiro conceito e da negatividade sugerida no segundo. A lógica (ou a falta dela) desencadeada por Obscura luz parece dialogar com os versos de uma canção de Tom Zé e Élton Medeiros: “tô iluminado pra poder cegar, tô ficando cego pra poder guiar”[5].
Desaparecimentos pode evocar a figura do mágico e, ao mesmo tempo, a do artista. Nesse trabalho, que pode ser lido como um filme, frame a frame, dois conjuntos de bastões dispostos lado a lado fazem desaparecer um lenço, progressivamente. É como se cada bastão congelasse um instante do processo para que o olhar do espectador seja provocando a desvendar um truque – o imperativo “veja” ressurge novamente. Em uma sequência, cinco lenços de mesmo tamanho desaparecem progressivamente ao adentrar bastão (evocando a visualidade de Porta-bandeira), enquanto na outra sequência os lenços encolhem até sumirem. A ausência, já discutida em Obscura luz, aqui retorna e se coloca de dois modos: o que se ausenta porque está escondido e o que deixou de existir. Observar novamente Obscura luz após alguns instantes diante de Desaparecimentos pode acrescentar interessantes reflexões: a sombra que se projeta se refere a um objeto oculto ou é a ilusão de algo que não existe? E se a sombra não for uma lacuna, mas uma presença em si?
Aladim é a performance que joga com Obscura luz e Desaparecimentos. A mágica (ou truque) evocada em seu ato, bem como a expectativa de fazer aparecer um elemento (fogo e, consequentemente, luz) que, no entanto, não é cumprida, dialoga com as presenças e ausências que constam nos dois trabalhos.

Obscura luz foi, portanto, uma exposição que explorou a complexidade da linguagem e das imagens. A mostra clama por um demorar-se frente a objetos triviais, que são rearranjados e intitulados de maneira provocativa. E se a linguagem é nossa maneira de nos relacionar com o mundo (seja para conhecê-lo, habitá-lo ou transformá-lo), esse demorar-se frente aos objetos é solicitado pela desautomatização da linguagem e pela nossa libertação do consenso e da pura racionalidade no que diz respeito a ela.
Em uma conferência intitulada … poeticamente o homem habita…[6], o filósofo alemão Martin Heideger nos faz entender que o que nos aliena não é a poesia, a ficção, mas a realidade e a linguagem automatizada, repetitiva. A poesia nos liberta e nos permite adentrar na infindável busca pelo ser e pelo sentido do habitar. Habitar poeticamente é sair do habitual. É desvencilhar-se dos sentidos fixos, pré-estabelecidos, repetitivos, que anestesiam e aprisionam o sensível.
Podemos dizer que Obscura luz é um exercício desse habitar poeticamente. O conjunto de trabalhos da mostra nos faz ouvir o apelo da linguagem e das imagens, renunciando às certezas e às assertividades. O perceber, o ver e o ser são desautomatizados. Não há consenso. Há uma interminável construção de relações entre o visível, o invisível e as palavras.
[1] João Guimarães Rosa em carta a João Condé, publicada no Jornal de Letras e Artes em 21 de julho de 1946, sobre a gênese do livro Sagarana.
[2] MORAIS, Frederico. Cildo Meireles constrói um castelo – um abismo. Jornal o Globo, 10 de outubro de 1983.
[3] Considerado o primeiro historiador da arte, cuja obra As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, publicada pela primeira vez em 1550, narra biografias de artistas do Renascimento.
[4] KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. In: Arte & Ensaios, n. 17, 2008.
[5] Trata-se da canção Tô, gravada por Tom Zé no álbum Estudando o samba, de 1976.
[6] HEIDEGGER, Martin. … poeticamente o homem habita… In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.
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Crítico e historiador da arte, mestre e doutorando em Artes Visuais pela EBA-UFRJ.
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